Quem existe ou age nas Circunstâncias Propostas: O ator ou a personagem?

Por André Haidamus

Eu vou refletir sobre uma das perguntas vencedoras do Quiz Stanislávski, que é: Se no Sistema Stanislávski o princípio é “eu existo agindo nas circunstâncias”, mas eu não faria o que a personagem faz, não penso como a personagem ou não me identifico com as atitudes e decisões tomadas pela personagem na peça, como criar a personagem?

O Sistema enquanto um sistema 

Quando se coloca em jogo algum questionamento que envolve um ou mais conceitos do Sistema, eu gosto de relembrar o sentido de ele ser sistêmico. Em termos gerais, podemos procurar o significado de sistema no dicionário do Google mesmo. “Chamamos de sistema um conjunto de elementos que podem ser concretos ou abstratos e que são organizados, que criam um modo de existir ou funcionar.” 

A partir disso, podemos pensar no sistema do corpo humano. Ele é formado por vários órgãos, com suas diversas funções, mas um órgão sempre depende do outro ou sua função complementa uma outra. Neste caso, se um dos órgãos não está funcionando bem, o sistema entra em colapso.

Assim também é o Sistema Stanislávski. Ele existe no conjunto de sua obra, e precisamos refletir sobre ele como um todo. Eu relembro isso, porque é absolutamente difícil responder a uma pergunta sobre o Sistema pensando apenas em um fragmento. Como se ele fosse capaz de existir em pequenas partes. 

As Circunstâncias Propostas

Deste modo, as Circunstâncias Propostas, que são o princípio-chave da nossa pergunta, estão diretamente ligadas a todos os outros elementos do Sistema. Entre eles, a Concentração, a Comunicação, a Ação, o Tempo-Rítmico, a Ética etc. Mas, como não somos incapazes de conhecer tudo de uma vez só, vamos por partes. Porém sem esquecer que a experiência, aquilo que nos atravessa como artistas e seres humanos na vivência do Sistema, se dá no conjunto da obra.

Para puxar o fio desta meada, é importante entender um pouco mais o conceito de circunstâncias. Vamos então para literatura. Eu escolhi olhar para este conceito pela obra Stanislávski e o Método de Análise Ativa (Perspectiva / CLAPS, 2019), da professora, artista e pesquisadora Nair D’Agostini. Na página 33, a autora cita o próprio Stanislávski e o que ele propõe que se entenda por Circunstâncias Propostas:

A fábula da obra, seus fatos, acontecimentos, a época, o tempo e o lugar da ação, as condições de vida, nosso entendimento da obra como atores e diretores, aquilo que agregamos de nós mesmos,  a mise-en-scène, o cenário, os trajes, os objetos, a iluminação, os ruídos, os sons e tudo mais que é proposto aos atores prestar atenção durante a sua criação. 

Percebam a amplitude e a complexidade do conceito! Pensemos ainda que ele está, de algum modo, condicionado a como nós entendemos a estrutura dramática. E que cada autor e suas obras pertencem a universos, linguagens diferentes. Compreender, portanto, as circunstâncias de uma obra de Shakespeare é diferente de compreender as circunstâncias de uma obra de Tchékhov, por exemplo. Por isso, é fundamental estudar o autor, sua época e a sua estrutura de escrita. 

Eu nas Circunstâncias 

Outra questão fundamental do conceito é que ele não desconsidera os artistas que irão criar ou recriar as circunstâncias, transformá-las em ação. Ao contrário, nossas subjetividades devem estar presentes na análise das Circunstâncias Propostas. E acredito que exista um nó importante aí sobre aquilo que agregamos de nós mesmos. Pois isso não quer dizer analisar as circunstâncias da nossa vida pessoal. Mas sim analisar as Circunstâncias Propostas pelo autor a partir de nós mesmos, da nossa individualidade e do nosso olhar para o mundo. 

Por exemplo, eu, André, homem gay, tenho dificuldades de pesquisar e criar as circunstâncias da personagem Romeu, da obra Romeu e Julieta, de Shakespeare. E isso porque se trata de uma personagem hétero, e eu não me apaixonaria por uma mulher. Também não me mataria por amor. Mas quando penso isso, eu estou refletindo sobre as circunstâncias da obra ou da minha vida privada? 

Agora como eu, André, penso, vejo, respiro, percebo o amor? Isso independe da minha orientação sexual ou do fato de que eu não me mataria por amor. Ou ainda podemos pensar se a grande questão da obra é realmente esta: se matar por amor. Então, existir e agir nas Circunstâncias Propostas pela obra não quer dizer existir e agir nas circunstâncias da minha vida pessoal.

As ações, atitudes e pensamentos criados ou recriados nas circunstâncias da obra estão a serviço de algo maior. Eles criam um sentido mais profundo desta obra, de seus temas, das questões levantadas pelo autor para refletir a vida. O que está muito longe da ação pela ação. E sempre precisamos perguntar para que isso nos serve, bem como quantas questões precisam ser feitas à obra. 

Não existe o papel, só existimos nós mesmos 

É importante elaborar perguntas, porque questionamentos nos movem para a ação. Quais as perguntas certas e precisas que devemos fazer para o texto? As circunstâncias são compostas de camadas, planos, e é preciso desvendá-las em ação, descobri-las no corpo, na relação. Por isso, não tenham medo de indagar as Circunstâncias Proposta pela obra, se colocar diante delas, para que então consigamos agir e existir nelas.

As unidades de ação da obra, as atitudes e decisões que a personagem tem na narrativa estão ligadas. Elas constituem algo maior: o que queremos comunicar como artistas na criação desta obra. E isso é também e, principalmente, uma questão ética. Portanto, a personagem é criada pelas Circunstâncias Propostas pela obra, a partir de nós mesmos na relação com os outros e com o que queremos dizer para o mundo. Nestes momentos, não existe o papel, só existimos nós mesmos. Do papel e da obra somente ficam as condições, as circunstâncias de uma vida, sendo todo resto nosso. Tudo nos pertence, já que qualquer papel, em cada um de seus momentos criativos pertence ao individuo vivo, isto é, ao artista. E não ao esquema morto de um individuo, isto é, o papel.

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